quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Autobiografia - Rosa Lobato de Faria (homenagem merecida)

Sei que é um pouco longa mas espero que a leiam toda.
A história de uma mulher que viveu outros tempos, outras mentalidades e que as combateu, revolucionou!
Ainda hoje nos temos de deparar com tanto machismo, não é meninas..? Enfim. Homenagem merecida. Leiam.


A escritora, letrista e actriz Rosa Lobato Faria, morreu hoje, dia 2,


aos 77 anos, depois de uma semana de internamento num hospital

privado. Foi colaboradora (dizendo poesias) de David Mourão-Ferreira

em programas literários da televisão. Autora, entre outros, dos

romances Flor do Sal, A Trança de Inês, Romance de Cordélia, O

Prenúncio das Águas, ou mais recentemente A Estrela de Gonçalo Enes

(ed. Quasi). Publicamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL

há dois anos



Autobiografia

Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca

tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual,

política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas

imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa

que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para

as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à

mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e

incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos

livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos

regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores,

passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo.

Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos

melodias nunca aprendidas.



Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas

inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas

como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como

verbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a

surpreendente mania de acreditar que isso era bom.

Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.



E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs

trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a

angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria

(não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa da

aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das

papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de

Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida

houve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).



Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove

ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras

infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas

raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e

sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que

o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos,

depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de

baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.



Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as

necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo

literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o

Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te,

menina, que vais ser escritora.



Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a

música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu

coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas,

vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele

molhávamos os pés e as almas.



Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.

Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde

saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem

vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que

não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com

palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave

na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca,

vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem

uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu

amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora

do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as

nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre

que ninguém tinha na vida real).



Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a

Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me,

ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido).

Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que

resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos.

Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente,

isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como

todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque

sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre

foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às

gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se

contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução

que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓS

fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É

preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo,

quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era

acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.



Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho,

erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito

bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra

chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda

espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a

Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta

até, praticamente, ao infinito.



Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que

estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A

ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia

crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63

anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez

romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete

ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê,

pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse

como acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando

vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me

atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e

me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).



Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se

muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da

imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se

tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito

feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens.

Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça,

idade ou religião. É um progresso enorme.



Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30,

comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer

umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas

destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que é

uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria

gratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não

há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e

sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores.

Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.



Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das

coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o

que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma

e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me

cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e,

no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.



Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para

contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só

me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é

excessivo.

Encontramo-nos no meu próximo romance.

Rosa Lobato de Faria

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